A série Black Mirror vem nos brindando com visões distópicas das redes sociais que, na verdade, nem são tão distantes de nossa realidade assim.
No primeiro episódio da terceira temporada, “Perdedor”, temos uma realidade paralela em que todos nós temos uma pontuação social que nos garante acesso a festas, aprovação em financiamentos, entre outras regalias.
Há uma enorme necessidade em parecer vencedor e normal, padrões de comportamento idênticos ao que temos atualmente: necessidade de um parceiro bem-sucedido, que se comporta como esperado, uma relação ‘caliente’, um casamento de conto de fadas, uma vida repleta de festas, popularidade, viagens e comemorações numerosas.
Um dedo no nosso nariz
O episódio certamente vai gerar reconhecimento imediato. Você pensará em várias pessoas e ao trazer para a nossa realidade, facilmente conseguimos reconhecer até como nós mesmos manipulamos nossas publicações.
Não devemos entrar em uma seara de crítica seca e ácida, como de costume nas redes, pois é óbvio que compartilhar apenas coisas ruins e prejudiciais é igualmente nauseante. Há um senso comum que diz: “não tem nada de bom a dizer, fique calado”, porém, a série é um dedo no nosso nariz, pois…
As redes são uma bolha
Pincelando a esfera filosófica, temos vários especialistas nas próprias redes falando sobre esse assunto: como muitas pessoas estão dependentes do Facebook e Instagram para auto-afirmar-se ou simplesmente destilam falsidade em um enorme simulacro.
Separei um pequeno trecho de Leandro Karnal relacionando o tema à Hamlet que nos dá um vislumbre da ponta do iceberg que este assunto contém:
Já em Simulação e Simulacro de Baudellaire, um dos tomos básicos dos alunos de Comunicação, ao entender o conceito percebemos que talvez estejamos vivendo o simulacro literalmente, afinal, o simulacro não esconde a verdade, mas esconde uma verdade que não existe!
Lembra-se do filme Matrix? No início do filme Neo recebe a visita da mulher com tatuagem de coelho. Note o que está escrito no livro que ele pega e que esconde o disquete que ele vende. Baita referência em um baita filme que põe em perspectiva as ideias propostas por Baudellaire. Mudando de prisma…
Ficção que poderia ser real
No LinkedIn, Luciano é um profissional de destaque, com vasta experiência, inteligência emocional que permite resultados de venda e integração plena com a equipe. Curte e compartilha textos de nomes conhecidos no segmento, de superação de metas, motivacionais e de atuação exemplar.
Na realidade, Luciano já foi demitido por comportamento anti-ético, por conflitos com colegas e, pessoalmente, não suporta mais o mercado de automóveis e pensa todos os dias em abandonar, mas o salário não permite.
Já Carlos, é um colega de trabalho difícil de lidar, assim como em casa, destila críticas a todos ao seu redor. Seu perfil no Facebook, no entanto, é uma sucessão de declarações de amor, viagens, de fidelidade aos amigos, de vida plena e feliz.
Márcia vende produtos para emagrecer, é um caso real de alguém que foi dos 100 para os 50Kg, seu Instagram é uma sucessão de fotos na academia, de pratos saudáveis e muita exibição do corpo sarado e sempre bronzeado.
Infelizmente, Márcia se tornou estatística da bulimia, doença que tem se tornado cada vez mais comum e certamente a enorme auto-exposição é uma das causas que a alimenta. O sacrifício feito para manter uma imagem de sucesso está sempre flertando com a fatalidade.
Como medir o que é saudável ou prejudicial?
Parece simples, mas normalmente são situações que vão crescendo, desenrolando e quando a pessoa real comandando o avatar percebe, a mentira já a engoliu e deglutiu algo diferente.
As críticas são numerosas e implacáveis. Como no episódio de Black Mirror, temos sede por reputação e estamos começando a passar dos limites do bom senso para conseguir que pensem de nós o que queremos.
Ficam as perguntas: você dá mais valor à experiência ou a registrar a experiência e compartilhá-la? E aquelas experiências que são tão marcantes que você simplesmente nem lembrou da câmera?
É corriqueiro para o homem tentar passar uma impressão ou agir segundo referências. Fazemos isso praticamente desde que existimos, porém, temos uma impressão de intensificação de distúrbios, com dezenas de síndromes e disfunções que são novos formatos de aflições passadas.
Somos o que compartilhamos?
Quantos Lucianos, Carlos e Márcias estão presentes no nosso dia-a-dia? Quantos conhecemos? E quais são as postagens que predominam nos nossos próprios perfis? Só vemos experiências positivas?
Todos temos lados que não conhecemos, lados ruins e pra que precisamos mostrar isso? O Facebook é uma sequência de escândalos, idêntico ao noticiário. Estamos minorando os posts que edificam, que constroem, que sacodem sem ofender em relação aos que escandalizam, que são completas perdas de tempo ou apenas ‘egotrip’.
Por quê? Porque os posts polêmicos tem mais curtidas! Porque ser pragmático com algum assunto mostra que você tem posição, certo? Posts com incentivos positivos costumam causar comentários “Ai, lá vem ele de novo…”. Não são populares.
Não podemos pensar no tema de forma míope. Temos várias formas de ver essas questões e certamente o simulacro existe paralelamente à visão pessoal de cada um. Não há certo ou errado aqui.
O conceito de realização é pessoal. Infelizmente faz parte do senso comum atual julgar nas redes uns aos outros e por isso não vamos nos manter nesse mérito à frente do texto. Até aqui você não leu qualquer novidade, pretendi apenas provocá-lo.
Onde as mentiras doem
Na segunda parte deste texto, vamos entrar onde o simulacro é perigoso: no campo empresarial. Vestir seu negócio espetacularmente para um propósito pode ser sinistro ou pior: desonesto. Aguarde a parte dois!
Enquanto isso, gostaria de saber até aqui o que você pensa. Comente, me chame nas redes, precisamos aprender a discutir mais e disputar menos.
Como podemos equilibrar estas questões? Como faz?