É verdade que lemos ebooks, que compramos obras pela Amazon que são “entregues” automaticamente em nossos Kindles, e que já estamos acostumados a falar em livro eletrônico.
Mas, para a escritora, professora e engenheira Maurem Kayna, uma produção literária verdadeiramente digital simplesmente ainda não existe. “A literatura digital ainda está nascendo”.
Como assim?
Literatura digital x literatura digitalizada
O que existe e já faz parte do nosso dia a dia é a literatura digitalizada. Ou seja, obras literárias que foram escritas para o papel são, atualmente, “traduzidas” para um meio eletrônico.
Eu sei que, quando leio Jane Eyre no Kindle, estou desfrutando de uma história criada em 1847 e que, só séculos depois, foi adicionada em uma ferramenta digital. Mas e agora que estou lendo a versão ebook de CyberStorm, uma trama futurista escrita em 2013? E aí? Para Maurem, dá no mesmo. Continua não sendo literatura digital, apenas literatura digitalizada.
Vamos entender logo a diferença. A literatura digital seria um conjunto de obras feitas especificamente para esse formato. Seriam livros escrito para as ferramentas eletrônicas, seriam histórias que funcionariam em sua totalidade apenas online e fariam uso das possibilidades que o mundo conectado apresenta.
“No inícido do cinema, os filmes nada mais eram que peças de teatro filmadas”, diz Maurem. É verdade. Em Viagem à Lua, considerada a primeira obra da sétima arte, a câmera nunca se mexe, é como se o espectador tivesse sentado na plateia assistindo a uma encenação teatral. Para a autora, o mesmo acontece agora com a literatura digitalizada. Estamos apenas transferindo conteúdo para o meio eletrônico, não criando nada específico para plataformas digitais.
Para ela, um livro verdadeiramente digital ainda não existe. Maurem não considera uma história online que ganhou, por exemplo, acompanhamento de “extras” como sons ou vídeos, como literatura digital. Não que ela ache ruim, apenas enxerga esses acréscimos como “enfeites” para o modelo tradicional, e não necessariamente uma nova forma de fazer literatura.
É isso. Ainda precisamos encontrar uma nova forma de fazer literatura. Mas Maurem Kayna tentou. Ela escreveu o livro / site / aplicativo / ebook Labirintos Sazonais, “uma obra para a esfera digital”. O “livro” mistura literatura com análise combinatória e permite que os leitores escolham diferentes começos, meios e fins para a história. A narrativa tem quatro “cenários” baseados nas estações do ano, verão, primavera, outono e inverno. Multiplicados, as situações e as opções de andamento, totalizam 64 possíveis histórias em um só livro. Os leitores / participantes ainda podem dar um título para cada um dos contos criados e enviar fotos próprias que ilustrem o que foi contado.
Pode até parece confuso, mas não é. “Fiz uma programação no Excel para testar todas as possibilidades e comprovar que cada uma era uma história viável”, explica Maurem. Mas ela até brinca que o resultado não é uma referência literária, e sim, um experimento.
Como o leitor lê na web?
A autora argumenta que o leitor mudou nos últimos anos. Isso porque todos nós mudamos. Nos anos 1990s vimos a popularização da Internet. Nos anos 2000s vivemos a era dos blogs que representaram o início da autopublicação, e agora, nos anos 2010s, estamos no tempo das redes sociais, dos ebooks e do YouTube. Tudo isso nos torna leitores diferentes.
Um fenômeno totalmente digital é a possibilidade de um leitor participar de inúmeras redes sociais específicas sobre literatura. Nesses espaços, o usuário pode trocar ideia com outros, mas pode também “falar” com os próprios escritores e, em alguns casos, influenciar no andamento das histórias que estão sendo escritas. Aqui do Digaí, já falamos sobre a escritora brasileira Nana Pauvolih, que se tornou um fenômeno de vendas de ebooks e que iniciou a carreira publicando nessas redes sociais.
Maurem cita ainda o crescimento dos BookTuberes, canais do YouTube que se dedicam a resenhar livros.
Para Maurem, essa possiblidade de troca opiniões entre usuários (e, por vezes, até com o escritor) “é um movimento que tem sacudido os hábitos dos leitores”. Ela lembra ainda que o novo leitor, o leitor conectado, é um “polvo”. Ou seja, um ser de vários braços, vários olhos, várias mentes, tentando fazer várias tarefas ao mesmo tempo. Quem se identifica levanta a mão. o/
Nossa atenção está dividida. Sempre. Recentemente, escrevi sobre como as distrações atrapalham (ou não) nossa capacidade de simplesmente parar para ler um livro.
Para a autora, qualquer artista que se proponha a criar uma literatura realmente digital deverá levar esse fator em consideração. “Isso vai mudar sim a forma como o autor escreve”.
Quem será a grande referência da literatura digital?
Se ainda não temos uma literatura digital, não nos falta opções para tentarmos. As ferramentas de autopublicação são muitas, a exemplo do Kinlde Direct Publishing, do Ibook Publishing e do Kobo Writing Life.
Será que destas plataformas vai surgir o Machado de Assis dos livros digitais? Para Maurem, o único impedimento para isso está na qualidade do que é publicado. Ganhamos em volume, certamente são produzidos mais livros hoje do que décadas atrás, mas perdemos em qualidade. Muito material ganha vida online, mas nem todos são produtos de criadores dedicados.
“Grandes nomes da literatura mundial como [Marcel] Proust e Virginia Woolf são autores autopublicados. Mas eles não escreveram suas obras de uma hora para a outra”
É possível acreditar que teremos um grande nome da literatura digital, que será tão importante como Proust e Woolf? Não sabemos. Ainda. “Um cânone acontece com o tempo e com o quanto aquela obra influenciou outros. Talvez hoje não possamos responder”, diz Maurem.
E vocês, concordam que ainda não temos uma literatura verdadeiramente digital?
Como acham que será o futuro da literatura?
O que vocês estão lendo ultimamente?
(A palestra de Maurem Kayna fez parte da programação da Fenelivro, a Feira Nordestina do Livro, realizada de 28 de agosto a 7 de setembro no Recife. A palestra “A Construção de um Cânone na Esfera Digital” contou também com a participação de Ednei Procópio, escritor e editor, e procurou responder a questão: quem será a grande referência da literatura digital.)